I
Era um sábado sombrio na cidade. Como de costume, Vince saiu para caminhar pelas ruas quando o sol estava a nascer. Ao olhar para o céu, vê as nuvens com um tom levemente marrom que, em contraste com o azul marinho, dá a impressão de haver um grande manto vermelho que se estende até o horizonte. A oportunidade de ver algo tão belo fez com que Vince seguisse seu caminho com um sorriso discreto, porém sincero. Aos poucos, percebia a cidade acordando: alguns carros passavam pelas ruas, pessoas se encaminhavam às paradas de ônibus e até alguns helicópteros eram vistos em certos momentos. Enfim, chega até o local desejado: uma área praticamente deserta com vista direta ao rio que cercava a cidade.
Todos os dias, Vince fazia o mesmo caminho. Algumas pessoas, ao vê-lo, estranhavam devido ao horário. Era uma pessoa um tanto introvertida. Tinha um bom emprego e amigos fiéis. Interessava-se pelas ideias de filósofos como Sócrates, Voltaire, Sartre, Nietzsche, entre outros, o que justificava seus pensamentos relativos à sociedade, ao ser, à política e à Ética. A sede pelo conhecimento era, como o próprio Vince dizia, o motor que o movia. Porém, seria justamente essa sede que acarretaria uma deterioração parcial de sua mente, e uma completa reestruturação de seu ser.
Dentre todos os seus problemas, o que mais fazia Vince sofrer era o medo. Dizer apenas isso é de uma generalização absurda, afinal existem muitos tipos diferentes de medo. O que fazia sua vida oscilar entre a mais pura felicidade, e a mais profunda insegurança, era o medo da concretização de outros medos. Em seu fluxo intenso de pensamentos, o que mais o preocupava tinha um nível de abstração tão alto que a própria complexidade o assustava. Chegava a ser algo esquizofrênico, mas parecia que havia alguma solução para esse problema. Vince achava que deveria focar-se mais em sua própria consciência, e deixar em segundo plano outras questões referentes a elementos externos. Isso era de suma importância, afinal o número de noites em claro causadas por seus temores já beirava o absurdo, e era preciso acabar logo com essa rotina de sofrimento.
Na madrugada que antecedeu este momento, novamente seus temores o impediram de dormir. O tempo passava e a aflição aumentava. Quando seu estado já não era mais suportável, Vince solta um grito desesperado e se vê deitado em sua cama olhando para o teto. Sentia como se seu corpo não aguentasse aquela pressão. Um espectro luminoso toma sua visão, e uma estranha sensação se apodera de seu corpo. Ele agora dorme, mas sua mente se encontra ativa de um modo que nunca estava antes. Começa a jornada de Vince para entender a si próprio.
II
O chão era estranho. O vento era frio, porém sentia algumas rajadas quentes esporadicamente. Olhou em volta: um grande deserto gelado, o que explica a estranheza do chão, que era gelo que se derretia aos poucos. O céu? Bizarro: uma coloração que mesclava roxo e vermelho. Ao mesmo tempo que a singularidade dos céus os tornava muito belos, também criava uma sensação ruim, parecida com uma experiência claustrofóbica.
Ao olhar para um lado qualquer, Vince vê uma figura humana. Consciente de que está em um lugar onde nunca esteve antes e que não tem como se comunicar com alguém conhecido, ele vai em direção à pessoa, que se encontra a mais ou menos cem metros de distância. Porém, a cada passo seu, a pessoa se torna cada vez mais distante. Vince corre desesperadamente ao encontro daquela figura, o que a faz se tornar ainda mais distante. Ele senta e tenta compreender o que havia acontecido. Completamente confuso, olha para aquele misterioso céu por alguns segundos. Ao olhar para frente novamente, se apavora: a pessoa agora está em sua frente, e é possível observar suas características. Tem a forma de um ser-humano, mas é feito apenas de um amontoado de matéria de cor escura, sem face. Dois segundos depois, ao piscar, Vince percebe que a pessoa não está mais em sua frente, mas sim na mesma distância em que se encontrava momentos atrás. A desorientação o consome.
Aquela figura estranha ainda está muito longe. Vince não compreendia a situação.
– Por que aquela pessoa apareceu em minha frente? E por que ela se distancia quando tento me aproximar? – Pensava ele, confuso.
De repente, um estalo ocorre em suas ideias: ele caminha na direção contrária àquela forma e, de um modo frustrante, percebe que ela continua a se afastar. Desiludido com o que parecia ser a solução mais sensata para aquele problema, Vince cai deitado no gelo, com a cabeça novamente voltada ao céu: a pessoa aparece em sua frente. Desta vez, ele se mantém imóvel.
– Nunca o… Nunca o vi… O vi por… Vi por aqui… Por aqui… – Disse aquela forma, trocando de posição a cada pausa. A voz tinha um eco.
– O que é você? Como eu saio deste lugar?
– Eu sou… Eu sou a… Sou a sua… A sua sede… Sua sede… ; Não é… Não é óbvio?… É óbvio?
– Como assim? – Pergunta Vince, atônito.
– Quanto mais… Quanto mais você… Mais você procura… Você procura entender… Procura entender tudo… Entender tudo ao… Tudo ao seu… Ao seu redor… Seu redor… ; Mais você… Mais você se… Você se distancia… Se distancia de… Distancia de si… De si mesmo… ; Em você… Em você mesmo… Você mesmo há… Mesmo há um… Há um mundo… Um mundo inteiramente… Mundo inteiramente novo… Inteiramente novo a… Novo a se… A se descobrir… Se descobrir…
– Mas como é possível? Eu nem sei onde estou!
– Bem-vindo ao… Bem-vindo ao mundo… Ao mundo desconhecido… Mundo desconhecido… Desconhecido…
A figura desaparece.
Vince não acredita no que acabou de presenciar. Como aquilo tudo podia ter algum sentido? Após alguns momentos tentando entender o que havia acontecido, ele nota que o céu estava mudando: não era mais roxo e vermelho, e sim azul escuro mesclado com pequenas linhas brancas. Algo parecido com neve começa a cair dos céus… Algo parecido com lâminas de vidro que não cortavam, mas que se desintegravam ao tocar qualquer sólido, formando pequenos pontos brilhantes. Ao longe, era possível ver um ponto onde a luz emitida pelas lâminas caindo no chão era muito intensa. Instintivamente, Vince ruma naquela direção.
III
Quando estava chegando próximo à luz, Vince percebeu uma particularidade: ele não sentia fome, sono, ou qualquer outro tipo de necessidade. Achou fantástico, mas teve que continuar seu trajeto.
Chegando ao local, notou que havia um grande círculo formado pelas lâminas do céu. Sentiu algo estranho conforme se aproximava: algo que não conseguia descrever, mas que o lembrava de épocas boas de sua vida. Sem qualquer hesitação, ele caminha em direção ao centro do círculo.
Sentia-se extremamente leve e, estranhamente, muito feliz. Todas as boas lembranças de sua vida vieram à tona naquele momento. Mais misteriosamente ainda, via imagens e flashes de acontecimentos que nunca presenciara, ou que pelo menos achava que não: seu subconsciente estava sendo exposto naquele instante. Lágrimas de alegria escorriam por seu rosto, já tomado por um sorriso tão natural que até Vince estranhava.
– A vida é algo realmente incrível. – Pensava ele.
O sentimento era de uma carga tão forte que se tornava impossível descrevê-lo. Mas isso era o que menos importava naquela situação.
Em meio àquela experiência, Vince nota que as luzes que o cercavam agora se tornam mais escuras. O céu volta a ser roxo e vermelho, e a sensação de leveza começa a se tornar um peso em seu peito.
IV
Ao perceber a súbita mudança do ambiente, Vince tenta sair do círculo, mas as paredes se tornam sólidas. O círculo vai se fechando, o que aos poucos o encurrala. Quando as paredes estão muito próximas, todo o movimento a sua volta cessa, e um silêncio implacável toma o ambiente.
– Alguém! Por favor, alguém me ajude! – Gritava desesperado.
Em uma fração de segundo, as paredes tornam-se vermelhas e muito brilhantes. Vince perde a visão momentaneamente. O peso no peito continua. De súbito, vêm à tona todas as suas piores lembranças. As piores tragédias, suas perdas, suas decepções e todos os seus erros são expostos naquele momento.
– Pare! Pare! Pare! Por favor! Eu não mereço isso! – Exclama ele em tom de agonia.
As imagens continuam por mais alguns minutos, que na percepção de Vince, pareciam ter sido horas. Quando tudo acaba, a figura humana que apareceu horas antes volta a se mostrar, mas desta vez com um rosto, mais precisamente algo como uma máscara.
– Você está com medo?
– Pare… Por favor…
– Você acha que é possível parar esse tipo de coisa em sua vida quando bem entender?
– …
– Pessoas felizes não são aquelas que não têm problemas, mas sim as que sabem lidar com eles quando aparecem. Não esqueça: quanto mais próximo da Verdade você estiver, mais dúvidas surgirão, mais inseguranças aparecerão e, consequentemente, mais problemas. Como você já sabe, são as perguntas que movem as pessoas, e não as respostas. O Universo não nos oferece qualquer sentido em suas obras, mas talvez nós sejamos algo que ele próprio criou com uma razão. Qual? Para entender a si mesmo. Daí a necessidade de você compreender seus sentidos e seus sentimentos: o Universo está dentro de você, ao mesmo tempo que você está dentro dele, e o ciclo continua até onde o próprio Universo encontrar sua própria finitude.
– É isso… Só pode ser! Você não é apenas a minha sede por conhecimento… Aquilo era só uma parte do todo… Você é… Você é o meu “eu”? Não faz sentido…
– Sou você e, consequentemente, parte do Universo, portanto tenho sentido. Cabe a você tentar encontra-lo, afinal, é a falta de sentido que dá sentido à vida.
– Entendo… Tudo aquilo que eu sofria… Todos os meus medos… Todos serão superados a partir do momento em que eu entendê-los!
– Naturalmente…
O círculo desaparece, e uma grande aurora boreal ilumina os céus em um espetáculo de luzes hipnotizantes.
– Para sair deste lugar, apenas caminhe na direção da aurora.
– Uma última pergunta…
– Qual seria?
– É possível que todas as incertezas, algum dia, sejam esclarecidas?
– Não sei… – Responde.
Aquela estranha figura desaparece.
Com uma surpresa desconcertante e ao mesmo tempo esclarecedora, Vince segue o caminho das magníficas luzes. Sente algumas sensações estranhas e um amortecimento em seu corpo, que o faz perder os sentidos. Quando retoma sua lucidez, se vê deitado em sua cama, olhando para o teto.
V
Levantou quando já era de manhã, e não mais pela madrugada, como era de costume. Fez o caminho até a parte deserta da cidade com a vista para o rio. Ficou observando o movimento das águas de um modo diferente. Caminhou até elas e observou seu reflexo deformado pelo fluxo do rio. Começou a rir, não porque algo lhe era engraçado, mas sim de emoção por finalmente ter conseguido preencher o vazio que insistia em assombrar sua existência.
A partir daquele momento, Vince nunca mais passou noites em claro por sentir-se aflito, mas sim por não conseguir tirar os olhos do céu estrelado.
O motivo? Não se sabe…
Vinícius Fratin Netto – 11/04/2013
Porto Alegre